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Memórias no Armário

 

Numa daquelas tardes feias e chuvosas, um convite a arrumar armários. Um chá fumegante levado para o quarto, panos de limpeza e disposição para a tarefa. O mundo fica lá fora e aos poucos aquela mulher vai se fechando em seu aposento, esquecendo o tempo real.

 

De gaveta em gaveta e no abrir de portas, o passado vai saltando vivo, como um baú aberto no meio do oceano, trazendo as conquistas remotas de seus antepassados, até então mantidas em total segredo. E a viagem começa.

 

Seu quarto, como de qualquer mulher, era um verdadeiro relicário adormecido e peça por peça vai sendo acordada e colocada na pauta do dia. O cheiro de guardado, depois de longos anos, não perdera o perfume usado naquela ocasião especial e as imagens vêm à tona refletidas no espelho de parede. O vestido azul longo, de faixa de cetim, é enlaçado pelos braços de Jorge, na pista de danças do clube do bairro. Ela sente o tremor nas pernas com medo de errar os passos da valsa. Fica ali ouvindo o som e sentindo as sensações. Era um tempo em que a virgindade ainda falava mais alto e as vontades eram contidas, não passando do contato com o corpo do outro na hora da dança.

 

A música termina, volta ao quarto em desalinho e continua sua tarefa. Limpa aquela parte do guarda-roupa e passa para a gaveta de peças íntimas. Tira tudo e começa a selecionar o que poderá descartar. De súbito, descobre um conjunto preto, colocado num plástico transparente. Esse brilho da embalagem a faz cair, mais uma vez, nas tramas da lembrança. Era uma noite de luz e de sombras, uma penumbra apropriada para o encontro dos amantes. Sentiu uma tontura e num roda-moinho se mostrava com as duas peças a Ernesto, pálido de tanto desejo contido. Vê-se magra, elegante, sedutora naquele encontro perdido nos emaranhados da vida.
O telefone toca e o encanto é quebrado por instantes. Logo volta à sua lide. Descarta algumas peças fora de uso, algumas até que nem mais lhe servem, pois seu manequim pulou duas casas. Passa para uma gaveta, onde descortina cores fortes e bordadas em paetês. Eram as fantasias de velhos carnavais. Desdobra uma a uma e a memória, como que seguindo esse movimento, vai entrando no salão enfeitado de máscaras e serpentinas. Ela está radiante e a banda entoando as marchinhas convida-a para o meio do baile. Um zorro lhe faz sinal e joga lança-perfume em seu corpo. Esse cavaleiro andante era Robson que, no fim dos quatro dias de folia, leva-a para cavalgar em seu dorso, tirando a máscara e tudo o mais.

 

O cheiro de lança ainda está no ar do quarto e as sapatilhas jogadas no canto. Suspira fundo em total felicidade pelo reviver e tem vontade de desfazer-se dessas alegorias carnavalescas, mas não consegue. Fazem parte da sua história. Abandona tudo de novo no fundo da gaveta e passa para outra. Era a vez das luvas, gorros, chales e cachecóis. Numa cidade quente como a dela, eram peças do vestuário usadas apenas em viagens. Pegou o conjunto marrom de luva e gorro e foi direto para Buenos Aires, andando no bairro do Caminito e passeando em frente à Casa Rosada. Quem a levava pela mão era Eduardo, imponente em sua capa de couro preta e chapéu cinza. Ele piscou e a convidou para um licor em um café aconchegante. A conversa enveredou para algo mais quente e foram para o quarto do hotel, misturar corpos e calores. Como sua lembrança era auditiva e olfativa, o som do tango entrava pelas frestas da janela e o cheiro do tabaco a tudo impregnava.

 

Absorvida nessas sensações, volta para seu espaço do quarto com o toque do interfone vindo de longe, como se fazendo parte do pensamento. Recebe uma encomenda à porta e volta aos seus armários. Três horas se passaram e pareceu-lhe pouco pelo tempo pelas viagens que fez e pelos quilômetros que percorreu. Faltavam três espaços a serem analisados e arrumados. Deu de cara com as roupas de praia: maiôs, duas peças, os monoquínis e os biquínis, cada qual com sua época e esplendor. Um vermelho de flores brancas chamou sua atenção e demorou a lembrar quando o tinha usado e que período fora aquele.

 

Concentrou a memória e veio a praia de Salvador, bela e de águas claras, e ela a tomar banho em seu remanso. Depois de refrescar-se naquele verão intenso, sai ao encontro de Felipe, que a esperava ao sol com uma caipirinha. Eles estavam em lua-de-mel e a felicidade sorria descarada. Aquele biquíni tinha sido adquirido especialmente para a viagem, mas saindo da praia ele foi descartado, de imediato, para desnudar o seu corpo e viver o amor à moda baiana. Que euforia! Essas imagens foram tão intensas que essa mulher voltou resfolegante de suas divagações.

 

Parou, respirou e deu continuidade ao seu objetivo. Cada coisa era uma etapa, aparentemente estanque, mas que, se ligadas entre si, formavam todo o seu referencial de vida. E foi no armário dos sapatos que descobriu um par de sandálias de saltos bem altos e de cor dourada. Com passos firmes, foi levada a uma festa. O calçado tinha sido um presente de Ernesto, aquele do conjunto de roupas íntimas. Fora o seu namoro mais intenso e duradouro, e o dourado representava até o brilho daquele amor. Tornou a experimentá-la e sentir outras ocasiões de glórias, quando a usara.

 

Limpou com cuidado e, como os outros guardados de valor, qual caixinhas de jóias, retomou o seu espaço para não interromper os mosaicos que formavam um quebra-cabeça da sua vida. Por fim, faltava verificar as roupas do cotidiano, que achava que nada fosse surgir de interessante. Algumas foram tiradas para doação, mas verificou que até na simplicidade havia as marcas do tempo. Aquelas roupas confortáveis e despojadas, que deixam qualquer pessoa à vontade. Sendo assim, ela se deparou com uma camiseta, até amarelada, que era usada após o banho. Sentiu o vapor saindo do chuveiro e o cheiro do sabonete que usava na ocasião. A presença do seu marido, o Felipe, fora sentida ao abraçá-la com carinho no corredor do apartamento. Pensou que os tempos de casada foram bons, apesar de curtos. Separou a peça para uma lavagem e também não teve a coragem de jogá-la fora.

 

Terminado o trabalho e já com as coisas no lugar, deitou-se na cama. Juntou todos os cacos de sua memória. Refletiu sobre sua vida. Uma coisa tinha certeza: os bons momentos foram sempre pautados pelas presenças masculinas e alegrava-se de ter sido mulher em toda a sua plenitude.


Colaboração: Eunice Tomé
Jornalista, Mestre em Comunicação e Escritora
autora do livro "Pequenos Contos de Viagem"

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