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Era um dia de trabalho, daqueles estressantes, trancado em uma sala entre computadores, onde os números saltavam por todos os lados. Cumprir as metas de faturamento, impostas pela gerência, era o delírio de Alberto, o qual não media esforços para chegar ao topo estabelecido.
Findo o período da manhã, tudo que ele desejava era sair à rua e sentir o ar bater em seu rosto e poder respirar, trocando os símbolos matemáticos por um céu azul e o calor do sol. O dia estava propício. Resolveu caminhar um pouco até um parque próximo, antes de se decidir pelo almoço.
Sentou em um banco sob uma frondosa árvore e conseguiu fazer o relaxamento que tanto precisava. As aulas de yoga, feitas anos atrás, ajudaram-no a sair do chão e voar em pensamento. Ele já estava se desligando do mundo físico, quando algo passou em sua frente que o fez voltar à realidade: o perfume era marcante e deixou um rastro impossível de não ser percebido.
Começou pelo sentido do olfato para depois estimulá-lo a abrir os olhos e tentar descobrir o que se passava no cenário ao seu entorno. A princípio, viu só uma névoa. Firmou a visão, piscando várias vezes e foi assaltado pelo impacto de outros dois olhos amarelados que o fitavam curiosos.
Passada a surpresa, ele compôs o restante da figura, qual quebra-cabeças, e entendeu o porquê da presença forte que o tirou da meditação. Ali estava uma moça de cabelos encaracolados e de pele morena. Aqueles olhos, porém, lhe traziam as mais remotas lembranças de tempos infantis, de brincadeiras e gritos de prazer pelos quintais. A máquina do tempo voltou em câmera acelerada e lá no recôndito do cérebro eis a figura de uma menina.
Alberto sorriu, só que não conseguia, de imediato, saber de quem era aquele rosto tão querido. Ela parecia ter mais certeza e se aproximou oferecendo a mão para um aperto. Foi então que aquele contato e ouvindo o seu nome sendo pronunciado pela jovem, ele achava que tinha decifrado o enigma. Sim, era a linda prima da meninice, que tantos sonhos levaram-no à loucura nessa fase de dúvidas e paixões.
Era Isabel, chamada não à toa de Belinha. Foi o primeiro amor de Alberto e o que o levou ao primeiro beijo. Beijo puro, com gosto de sorvete de morango, deixando ambos da mesma cor do objeto consumido. Do aperto nos fundos da casa de campo de uma das férias escolares. Da troca de olhares do fundo da alma e de deixá-lo em vertigem.
Tudo ficava claro e, ao mesmo tempo, a lembrança da separação dos dois, quando o pai de Belinha teve que sair do país por motivos políticos. Não houve nem tempo de se falarem e nem obtivera muitas explicações do ocorrido. Apenas aquele vazio e as saudades.
Uma carta havia recebido dela seis meses depois da partida e os relatos eram de puro sofrimento na nova casa. Ele tentou consolá-la com palavras. Os contatos foram rareando até que cessaram. Nessa altura estavam adolescentes e outros interesses surgiram. Mas vez ou outra vinha a sua imagem povoar seus pensamentos.
Agora ali em carne e osso, moça, linda, sorridente. Subitamente, a sensação do primeiro beijo causou um frio na espinha. Convidou-a para almoçar e, em pouco tempo, um retrospecto. De sobremesa pediram sorvete de morango e sorveram com o mesmo sentimento do viver o passado. Havia erotismo sim, mas aquele perdido em tempos de pureza, nada se comparando com os modernos da vida de adultos.
Eles eram crianças de novo, livres dos preconceitos e das normas ditatoriais. Os números nas telas do computador foram ficando distantes e dando lugar ao verde do parque, que escolheram para deitar e sonhar um no braço do outro. Na meditação, a retomada da fazenda, dos olhos amarelos a espreitar dentro da alma o fogo que ardia em passos lentos.
Colaboração: Eunice Tomé
Jornalista, Mestre em Comunicação e Escritora
autora do livro "Pequenos Contos de Viagem"
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